quinta-feira, outubro 26, 2006

Criação Patafísica

...pediu isso?
Sim.
Nessas exatas palavras?
A-ham.
“Criem um Universo”?
Por que vocês não acreditam?
Nunca fizeram isso antes.
...quantos seriam necessários para fazer tudo?
Como vão ler?
Não importa. O Grande Editor pediu.
Ele entende disso.
...certo. Vamos ter idéias.
Ei, você! Anote tudo o que pensarmos!
Vai ser parecido com o nosso?
Algumas coisas.
Vida.
Claro! Se não tiver vida, não tem graça. Mas vamos fazer isso depois.
E se se enjoarem da vida?
Dêem um jeito. Destruam, modifiquem...o que der.
Eles saberão de nós?
...devem acreditar. Nunca saber. Isso! Crie entidades superiores cuja existência é incerta! Não são feitos de matéria. Apenas daqueles que acreditam.
Mas...por que não podem saber?
Está mais do que provado que histórias com muita consciência tornam-se autônomas. Podem até se incorporar a nossa realidade.
O Grande Editor não ficaria muito feliz com isso...
Um pouco de consciência, vai!
Assim eles teriam cada vez mais!
Faça um Universo infinito e vago!
Sabe, isso pode funcionar! E seria muito mais interessante. Já se sabe tudo do nosso.
E como faremos para ele surgir?
Primeiro crie toda matéria. Invente suas propriedades e características. E ponha tudo em um só ponto.
O.K.
Anotou tudo?
Segundo: luz. Invente qualquer desculpa para que ela exista. Assim podem ter uma IDÉIA de tudo.
A-ham.
E pensem num meio da matéria virar vida.
Anotado.
E limites para ela.
Como assim, “limites”?
Existir em condições muito específicas e raríssimas. Assim será difícil se encontrarem.
E como terminará a vida, quando se enjoarem?
Faça com que ela pare e se desintegre após pouco tempo.
Isso!
Hm?
Podemos fazer com que ela se decomponha, assim sempre terão coisas diferentes!
Nunca vi coisa semelhante.
E como vamos chamar essa desintegração?
M...
O...
R...T...
Morte?
Gostei. Anote isso.
A-ham.
Divida a vida consciente, assim eles darão nomes e perspectivas diferentes a coisas como a “morte”.
Isso causaria conflitos.
Melhor ainda!
Mas agora, o começo de tudo.
Não será muito definido para eles.
Eu sei. Mas como começará?
...“que haja luz”?
...“existia o Verbo”?
...“Bum”?
... "Ops!”?
Estava pensando em algo diferente. Afinal, há umas...

sexta-feira, outubro 20, 2006

Operário arroz com feijão

Acordou bem cedo como fazia todos os dias, tomou dois goles de café bem quente num copo de requeijão, despediu-se da mulher num monossílabo e saiu da usa quase-casa. Tinha que andar um bocado até o ponto de ônibus. Era cedo, bem cedo, e via seus compadres acordarem tambem, cada um com sua quase-família e sua quase-casa. Pobres. Como ele. Atravessou a rua, pegou o ônibus. Sua cabeça chacoalhava junto com o veículo. Perguntou as horas a um colega que sentava-se ao seu lado mas a prosa nao passou disso, ficou cada um olhando pra um lado, sem ver nada. Seus filhos ficaram em casa dormindo numa quase-cama. Tinham que estudar! estudar muito, pra ser alguém na vida. Moleque preguiçoso leva chinelo. Tem que aprender desde cedo...desde cedo. Era cedo, ele estava quase chegando no serviço, o ônibus parou, desceu, saudou com a cabeça seus colegas, comeu um pedaço de pão. Saco vazio nao pára em pé. Misturou o cimento, ergueu paredes, via surgiro prédio em que trabalhava como uma mãe via nascer o filho. Água, cimento, cal, areia, braço, tijolo, em ritmo de sinfonia. Sinfonia? Samba! Cantarolou com sua voz grave e rouca marcada de Brasil, incompreensível quase para os doutores. E sua voz baixa, como sua cabeça, soou alta, livre. Alto. Livre. Sentindo o vento das alturas no seu rosto, cúmplice dos pássaros que se aventuravam pela construçao. Ali ele era o criador, e todo o mundo abaixo dele, criação sua. Sentou para descansar, enxugou o suor, estava quente. O trabalho marcara vincos em seu rosto. Erosão. E esse memso trabalho, arrependido talvez, tentava preenchê-los de volta. O suor era o cimento e a poeira o tijolo. Comeu seu feijão com arroz ali mesmo, ao lado do Zé e do João. Falaram futebol. O Corinthians tava mal das pernas, o Zé era palmeirense, sorte a dele. Voltaram ao trabalho. O doutô fica sabendo de tudo, e gente preguiçosa nao presta, tem que trabalhar. Quem nao estudou tem que trabalhar. Por isso fazia questão que os meninos estudassem. Ergueu mais paredes, mais dia menos dia e estaria acabado. Sua construção, seu filho. Areia, cal, cimento, suor concreto. Tijolo, cimento, força, trabalho. Trabalho. Cansaço...o dia estava quase no fim e era o dia do doutor pagar. Foi, mais o Zé e o João, junto dos compadres beber uma cachacinha. Gente boa eles. Gostam de samba. A rua iluminada era linda. Iluminada por várias estrelas que brilhavam tanto...As estrelas rodavam. De repente, uma estrela cadente. Duas! iam cair na sua mão. Dizem que estrela cadente dá sorte, será?

- Morreu ontem mais um delinquente bêbado, amor, eu vi ontem à noite, voltando do trabalho...
- Coitado. Passa a salada...

domingo, outubro 15, 2006

Sala Cheia

Aqueles risos. Ecoavam por toda parte. Aquelas cores. Aquelas pessoas vazias, aquelas palavras destituídas de sentido, destituídas de tudo. Aquelas palavras desperdiçadas e perdidas no som alto da música que ribombava nos ouvidos dele.


Aqueles corpos dançantes, semi-automáticos, maquinais. Aqueles corpor unidos, grudados, separados por uma infindável distância. Ele, sentado, era apenas um observador. Um observador daqueles porta-almas mal preenchidos, daquela massa homogênea, daquela substância única, formada por diferentes pessoas iguais. O som, sempre alto, as luzes epilepticamente piscando, ele, em silêncio, gritava por socorro.

O tempo passava. A sala cheia, entupida, estourando, era vazia. Vazia de sons, vazia de visão. Intátil e inodora. Asséptica. Devidamente esterelizada.
O ambiente era louco. Pulsante de algo estranho, mas não de vida. Não para ele.

Porque ela demorava a chegar. Provavelmente não chegaria. Depois de tudo, não chegaria. Depois de tudo...

Por que ele pensava?

Por que aquele sorriso não ia embora, de jeito nenhum? Depois de tanto tempo, por que aquela sensação continuava a martelar-lhe as entranhas? E esmagá-las, e picotá-las, e, depois, abraçá-las, antes de recomeçar tudo.
Por que aqueles sons gritavam, por que aqueles corpos se misturavam? Mas não ele. Não o dele.

Todos sorriam. Não ele. Não ele, porque ele não conseguia. Porque era impossível daquele jeito. Porque não dava. Porque ele não queria tentar. Porque não conseguiria. Porque não podia dançar.
Merda.

Por que aquela imagem? Por que aquele rosto sorria dentro da sua cabeça?
E, cada vez que ela sorria (no seu pensamento), ele se afogava e se perdia. E, depois de não mais que um milisegundo, acordava fitando o vazio. Ou o cheio.
E quando a encontrava, perdia-se em seu toque, em seu olhar, em sua visão. E queria tê-la, por toda eternidade, por mais finita que ele sabia que esta poderia ser.

Vazio.
Cheio.
Pessoas.
Ela não viria, de qualquer forma.
Era melhor ir tomar alguma coisa.



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Mrs. Maciel, usei o título do seu último texto como inspiração para este aqui. Espero que gostem!


Sala Vazia

Uma luz fraca pendia sob o teto da sala, mal-iluminando o livro aberto e as palavras escritas a lápis no canto do texto. Tratava-se, creio eu, de um livro de cálculo, já gasto pelo tempo, com a borda das páginas acumuladas de poeira e um cheiro amarelado de folha seca. A sala era vazia: não comportava muitos móveis, apenas um sofá azul para duas pessoas, uma mesa redonda de madeira de plátano e duas cadeiras cujo estofamento estava rasgado; no canto esquerdo perto da porta, uma pilha de livros encostados na parede. As meias cinzas ainda descansavam no centro do cômodo. Parecia que o costume a impedia de se abaixar e recolhê-las, já que estas não haviam mudado de posição nos últimos meses. Talvez, se fossem guardadas, levariam consigo parte daquele lugar, onde passavam-se tão agradáveis horas rindo de coisa alguma.

Do outro lado da parede, a louça encontrava-se lavada pela primeira vez e a cozinha não convidava aqueles bem-aventurados a se retirarem correndo em busca de um ar respirável. Podia-se ver o chão e caminhar com tranqüilidade, sem aquele medo de pisar em algo que, em seguida, viesse a esfarelar-se. Respirou fundo, pela primeira vez, e deixou um teimoso sorriso de satisfação rabiscar-lhe o rosto corado.

Voltou para a sala vazia e sentou-se em seu lugar de rotina. Olhou em volta, como se à espera de alguém e, rapidamente, sentou-se no lugar dele. Sentia-se bem agora, vendo a mesma cena de antes só que disfarçada de outros olhos.

Lembrou-se do primeiro dia, daquela ansiedade de julgamento e do medo de uma nova decepção. Lembrou-se do segundo dia, da ansiedade da espera, do medo sem motivo. Tornou-o cúmplice de sua vida e ouvinte de seus desgostos. Fez do seu amor um amigo, do seu sorriso uma saída. Chorou em voz alta sua bronca com o que não é da alma do ser humano até o momento em que se cansou do lugar comum em que se encontrava. Era feita de vidro, sabia disso, e a ele não enganava.

Estava adiantada. Ainda faltavam minutos para ele voltar. Sentou-se novamente no seu lugar e pôs-se a ler o que havia começado. Embora não houvesse poesia naquelas palavras, ela gostava do fato de transbordarem no hálito que as carregava.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Chuva-Poema

Chove, chove um poema
gota a gota, letra a letra
bate no telhado, cai pela goteira
recolho as letras num balde
enxugo o chão molhado
me da uma canseira
e reparo que estou sempre cansado
recosto na cadeira, ligo o som
rabisco numa folha em branco
e a chuva martelando la fora
e as letras formam versos
e tento escrevê-los inversos
passa uma formiga refugiada
pego-a com minha mão toda molhada
de letras de chuva
e enxugo o "c" com uma toalha
e a chuva vira uva
porque o "h" eh mudo, coitado
e volta pro telhado
junto com o "c" enxugado, chhhhh
e fico com fome, como a uva
abro meu guarda-chuva
cuspo os carocinhos dentro
e para de chover, em mim

Relampeia na janela
e eu penso nela
fico surdo com o trovão
que é uma trova gigante
de algum gigante poeta
e olho a chuva da janela
vejo luzes vaga-lumes vaga-luzes
ouço o barulho do vento irritado
assobio uma canção num dueto
olho pro teto, fico sentado
e as letras tornam a pingar
mudo o balde de lugar
e escorrego numa gota molhada
fico no chão deitado
ouvindo o "h" mudo rir de mim
(junto com o "a" da uva de comi)
hahahahahahahahhahahahah
pego um "c" da cadeira
e faço um châ quente
sento no sofá, rio do "h" (que bebi)
e o barulho lá fora diminui
a fumaça do chá embaça meus óculos
como a chuva embassa a janela
fico com sono
durmo

Acordo com o sol da manhã
em volta de letras pingadas
um passarinho pousa na janela
Bom dia!
pois é...que chuva ontem...
eu que o diga...
choveu poesia