quarta-feira, agosto 29, 2007

Uma noite

Um quarto escuro, como de costume. Caminhou pelas tábuas de madeira que compunham o piso do aposento até o banheiro frio de azulejos brancos. Com as mãos trêmulas, abaixou a maçaneta com um movimento breve e empurrou a porta no sentido horário. Era um cubículo mal iluminado, com uma janela semi-aberta, deixando transparecer raios da luz da lua, única presente no céu naquela noite triste. Percebeu uma música que vinha da casa de seu vizinho. Era um tema um tanto quanto melancólico, tocado em um piano velho e desafinado; a música parecia chorar. Acompanhou as notas com o queixo levantado, como se desenhando algo no espaço. Dançava os pequeninos membros na frente do espelho até atingir a primeira gaveta. Abriu-a e procurou por seu estilete, presente de um amigo que partiu. Levantou a lâmina e olhou fixamente para o brilho da lua refletida no instrumento. Girou-o de um lado para o outro, procurando o ângulo que mais lhe agradava a vista. A música havia parado por alguns instantes mas voltou a tocar, e tocava cada vez mais alta, com mais vontade, mais desespero, mais vida, talvez, pensou ela. Guardou a lâmina e deixou o instrumento em cima da pia. Começou a despir-se. O casaco marrom de lã, a camiseta branca. Gelou. Um vento frio entrou pela janela e arrepiou-lhe e espinha; tirou as calças, lentamente, admirando suas belas pernas brancas, cheias de veias azuis, que cresciam e se enroscavam em sua carne como trepadeiras. Abaixou a calcinha vermelha e viu seu sexo descoberto; soltou os ganchos de seu sutiã e, num movimento rápido, seus seios de mulher, até então enrijecidos, mostraram que nada resiste à gravidade. Sentou-se sobre o assento do vaso sujo de poeira, não se importando com o que poderia vir a irritar-lhe ou causar-lhe coceiras depois. Dançava com o queixo a música que corria de um lado para o outro do piano. Com seus gestos doces de bailarina, alcançou o estilete que descansava sobre a pia de mármore. Voltou a levantar a lâmina, encarou-a com os olhos fechados por mais algum tempo e, calmamente, abaixou seu braço até onde seus pés tocavam o chão. Encostou-se e encostaram-se a menina e a lâmina fria. Brincava com a pontinha de ferro que, se manuseada com cuidado, não provoca cortes profundos. Não era o que queria – cortes profundos – não. Queria pequeninos cortes ardidos ao longo de seu corpo, queria marcar-se como ser sofrido e sozinho. Enlaçavam-se os dedos da mão e os dedos dos pés, abraçando o objeto que trazia consigo sobre a palma da mão direita. Rasgou o chão na junta entre dois bloquinhos do azulejo com um movimento rápido que fez o barulho de uma lixa rasgando a ponta de uma unha. Tocou o metal com a junta de seus dedinhos. Perfurava-lhe e pele. Corria com a música por entre todas as suas oito juntas dos pés e transbordava sangue – líquido vermelho do qual somos feitos – desfazendo-se. Os olhos ainda fechados apertavam-se cada vez mais forte. Não chorava. Não ia chorar até a música terminar. Sentia-se inebriada por aquela sensação de estar viva e sentir-se viva. Corria ainda mais a lâmina sobre pele e carne. Chegou ao sexo e dilacerou o nome de seu amor – Amor – nas paredes dos lábios. Uma gota de sangue para cada lágrima guardada. Subiu pelo meio do corpo, estraçalhando o umbigo e deixando o ventre à mostra. Corte horizontal nos seios. Não cortou a garganta nem o rosto. Lambeu o sangue que esquentava o estilete – presente de um amigo que partiu – e guardou-o de volta na gaveta de onde o tinha tirado. Sorriu ao ver seu corpo: estava enfim livre da dúvida de sua existência; poderia morrer sossegada quando sentisse aquela sensação estranha de que estava se esquecendo de respirar. Foi tomada por um suspiro que lhe tirou o que restava no peito. Caiu gentil no chão vermelho, com a cabeça apoiada em um dos braços. Sussurrou algo de leve para as formiguinhas que vinham visitá-la durante a noite e fechou seus olhos, à espera de alguém que visse poesia em sua imagem.

Um comentário:

Maurício disse...

descobri que somos uns perturbados.