sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Gesualdo

A porta rangia toda vez que era aberta. Um ruído ácido e dolorido, para lembrar que, apesar do silêncio da madrugada, as orelhas ainda estavam bem presas à cabeça dos que passavam.
Mas ele estava surdo. Sabia o que estava acontecendo. Sabia o que ia encontrar atrás do rangido das dobradiças velhas. Não era uma questão de ciúme.
Eis que a dobradiça se torna música, com seu timbre alto, com seu gemido trabalhoso. E a faca e a arma de fogo saem sabe-se lá de onde (mas haviam sido guardadas sob a roupa dele premeditadamente), e as mãos, e o sangue, e os gritos. Ah, os gritos. ah os gritos...
Mas naquela hora não era só surdez. Era cegueira, era descontrole. A faca subia e descia sozinha (mas a mão que a acompanhava sabia o que estava fazendo).
E a mulher deitada em cima da cama, nua, esfaqueada. O homem vivo, veste a roupa dela, veste, desgraçado, veste antes de morrer. E depois o homem também estava deitado, ao lado da mulher, vestindo sua camisola, morto. morto.
E os servos da casa sabiam, todos sabiam, menos o bebê, que chorava, que chora até agora, que não pára de chorar, não quer parar! Ele sacode o berço com vigor. Não é dele, o choro não é dele, o choro é do homem vestido de mulher. Ele sacode, o homem chora, a voz do bebê é a voz do homem. Por fora o bebê pára de chorar, pára de respirar, mas por dentro o homem ainda chora.
O rangido da dobradiça, o grito da mulher, o choro do homem. Música.

2 comentários:

Anônimo disse...

bom. Uma refinada não seria má idéia, se está interessado na minha opinião.

Mas de fato não sei quão animais ou quão humanos somos.

WoO disse...

Valeu!